Os olhos não viram. E o coração nada sentiu.
A tarde que caiu, a moça na janela, topless, o grito gestual de alguém que não se distinguiu, de tão amorfo. O prato de sopa na beirinha do carrinho do bebê, colocado aquecido e esquecido pela babá seduzida pela telenovela, e o novelo, já no chão, da avó que dormia, cochilava, dormia e acordava, até desacordar de vez para ressuscitar no dia seguinte. Os olhos não sentiram. E o coração nada viu.
Mônica bateu a porta com força. Indignadíssima, pê-da-vida com o marido porque ele não comprara as passagens para o fim de semana prolongado em Miami. Principalmente porque já tinha tonitruado a meio mundo que iria e iria e voltaria trazendo sacolas e mais sacolas de muambas para vender por aqui ou apenas fazer “aquela gentinha” morrer de inveja. “Mas como é que pode meu Deus, o Maurício proceder assim, e logo comigo? Que amigo, hein? E por falar em Maurício, onde estaria Maurício? (Você, por acaso, viu o Maurício por aí? Não? Então telefone para a Mônica dizendo que não: 9987-2317. Afinal, qualquer desinformação serve, mas com alguma verve). Do contrário, a coisa ferve.
Mônica, coitada, encolheu-se em posição fetal, no canto da sala, sob um abajur gigante, aceso, pois já se fazia noite. E que noite! Maurício, nada. A ponto de Mônica pensar em telefonar para a polícia, necrotério, hospital, chamar o exército, a marinha e a aeronáutica, além dos bombeiros da defesa civil, para localizar o marido. E desejou, por um relâmpago de momento, que ele estivesse morto de verdade. Fulminado por um raio. Mas não chovia e a meteorologia alardeara tempo bom, céu de brigadeiro. E de fato estava assim. Debalde, então, tal desejo de Mônica (não havia florestas com árvores frondosas por perto, capazes de atrair raios mortíferos, nem Maurício tinha por hábito passear pelas florestas). Campainha.
Campainha. Insistente. Tão insistente que despertou Mônica. Estremunhada, levantou-se do canto da sala com muito esforço e lentidão. Apalpando o ar como uma cega. E tropeçou. Ao tropeçar, e quase cair, praguejou, o que a fez retomar contato com a realidade e os acontecimentos que a levaram ficar de profundo mau humor. Ah, deveria ser ele, à porta. Só poderia ser dada a insistência. Aí, Mônica, sorriso sardônico, elucubrações mil dentro de sua cabeça louríssima, respirou fundo, se recompôs e se pôs em emboscada: Maurício não escaparia, e pagaria pelo grande mal perpetrado contra ela, frustrando Miami e a inveja que de lá importaria para provocar as amigas (sic). Ato contínuo pegou uma estatueta pesada de madeira que estava em cima da mesa oval de vidro no centro da sala, postando-se atrás da porta.
“Pelo menos um susto dou nele!”, grunhiu Mônica em leve murmúrio. Imediatamente abortou tão violento desatino. Inteligente, sabia que Maurício sempre levava a chave de casa e, portanto não premiria a campainha. Raciocinou rápido e súbito o rosto esquentou, sentiu as faces calientes, puro carmim. Pagaria mico. Porém, quem seria àquela hora, que era de jantar. Parente nenhum morava perto. O mais próximo encontrava-se a uns 500 quilômetros dali e ninguém da família dela, ou dele, “aquele desgraçado”, tinha o péssimo costume de surgir sem avisar com antecedência, aliás, com bastante antecedência, respeitando o código baixado por ela mesma, Mônica. Era tácito. Contudo, quem seria? “Seria?...” E que “seria” seria este que martelava na cabeça dela? Huuummm... Altos e insondáveis mistérios. Que levariam a extensíssimas digressões e, fatalmente, a excitantes transgressões. Haveria um amante sublime na jogada? Se houvesse, por que justo naquela hora, naquela contingência? Completamente fora de propósito, suou Mônica, se é que com aquele “Seria?...” enfiara a carapuça de adultério.
Respirou ofegante a mulher atrás da porta. Campainha cessou. Mas a postura de Mônica continuava a mesma: parecia um primata com tacape, no meio de sombras, e sombras da noite que invadira a sala. Por um átimo sentiu-se ridícula. Maluca! “É de malucos que o mundo precisa para mudar, mudar para melhor”. Lera isso não sabia onde. Algum político talvez dera entrevista lançando tal afirmativa. Parece coisa de político mesmo. Ou de poeta revolucionário. Ou de um político-poeta. Maluca! Via agora uma garotada infernal fazendo algazarra num beco, cerceando ela, Mônica, e berrando “Maluca! Maluca! Piranha maluca!” Crianças como gafanhotos. Ou como mariposas nervosas, voando em torno do abajur. De pronto, Mônica reagiu, conseguindo espantar os insetos, não sem antes golpear o ar com seu tacape repetidas vezes. Apesar de toda má pontaria, Mônica não perdera a concentração nem o intuito de dar uma bela e certeira cacetada no cocuruto de Maurício, pra ele aprender a honrar seus compromissos, principalmente aqueles que diziam respeito a ela. “Ora bolas, que falta de sensibilidade!”
Campainha de novo, e um som de leve batida na porta. “Intrigante!” E revirou os olhinhos azuis, comicamente, grácil, infantil. “Se não for o Maurício?” Com que direito, com que ordem, com que licença o porteiro do prédio permitiria que uma pessoa, um estranho, entrasse e subisse? Um vizinho, talvez – o da esquerda viajara, só poderia ser o da direita, imaginou. E se também não fosse? Ah, o síndico. Isso, sim, o síndico. Ou melhor, a síndica, aquela mulherzinha baixinha, narigudinha, bundudinha, com cabelinho na venta e pele horrível, parecendo uma barata descascada, branquela, quase transparente. E, pra variar, chatérrima, implicante. Apesar de todas essas qualidades, era casada e prole de seis. Todos num apartamento de dois quartos e salão, etc., etc., igual ao dela, Mônica. “A síndica! Não é possível, my God!” Porque, quando a síndica aparece, antes ela avisa, interfona, e chega aos apartamentos dos condôminos acompanhada de pelo menos três porras-loucas maleducadíssimos que chama de filhos, verdadeiras assolações de fazer inveja aos mais ferozes dos hunos.
Hipótese terrível afastada, só restava mesmo o Maurício que, na certa, esquecera a chave. Ou perdera. O jeito de ele tocar a campainha ou bater a porta ela já não se lembrava mais, porque, simplesmente, Maurício nunca a esquecia. “Só pode ser ele”. Certeza absoluta. Batuta. Batata! Não deu outra: era de fato o Maurício, com cara de tolo, no corredor, só agora olhado pelo visor mágico pela Mônica pré-histórica, pré-histérica, pré-menstruada, predatória, com aquela maça na mão erguida. Exausta, baixou o braço e a estatueta fugiu-lhe à mão, caindo bem em cima do dedão do pé, descalço. Berrou. Mônica deu um berro primal. Que atravessou as paredes do apê, perfurando-as e horrorizando Maurício do outro lado, em frente à porta, que tremeu tremendo e tremendo acabou morrendo. Do coração, hirto. De um mal que sua mulher desconhecia. E ele próprio também, morto de surpresa.
Moral da estória: quem queria só assustar, assustou. Sustou, sim, o pulsar, o fluir do sangue nas veias, congelando-o de tanto pavor. E isso muitos olhos não viram. E o coração (a não ser o coração do morto) não sentiu nada. Nem a tarde que caiu, nem a noite que entrou na casa do casal, nem os sonhos da mulher que desejava tanto ir a Miami e fazer as amigas(sic) morderem-se de cruel inveja.
Ironia da estória: no bolso esquerdo do paletó de Maurício, duas passagens ida-e-volta a Miami. Só que para dois dias depois desse desenlace todo, pois houve greve dos aeroviários e consequente adiamento do voo.
Se Mônica teve remorsos? Bem, logo depois de abrir a porta e deparar com o cadáver de Maurício, ela correu para a janela da sala que se abria para o abismo. Escancarada, lá do 23º andar.
Aí os olhos viram. Porque os jornais da tevê noticiaram em cores, com direito a replay, o salto para o desconhecido.
Aí o coração sentiu. E sentiu muito.
Querido Ricardo, uma pergunta que não quer calar: quando terei o prazer de ler seus textos reunidos em um livro?
ResponderExcluirBeijos
Belvedere
Ricardo, faço minhas as palavras de Bel.
ResponderExcluirQueremos o seu livro. Bjs, nana
E o de Nana tb.
ResponderExcluirBelvedere