1 de outubro de 2011

Antiguidade & Humor


ESTÓRIAS DO TIO HERÓDOTO


 “O Egypto é a Dívida do Nilo”


          
            Meteamon III e sua esposa Ninfômana XVIII quedaram-se na mansuetude de sua opulenta mastaba. Ele lia com interesse fora do comum, à luz de imensa claraboia, a “Roseta Press” com as últimas notícias inscritas em hieróglifos sobre a crescente luta de classes (nobres contra faraós e a agonia da mão-de-obra escrava, fora os pesados impostos impostos ao povo), enquanto ela ligava seu mecanismo de sonhos (ainda não havia televisão) para assistir a mais um capítulo de “A Serpente do Nilo atraca outra Vez”. E a ampulheta marcava 17.789 grãos. Era noite.
            Época de crises que abalavam e embalavam o Império Faraônico, um tanto cônico, ou melhor, como sói acontecer nessas ocasiões, os faraós é que abalavam o Império. “Uns esbanjadores hedonistas” – lascava na pedra ou no papírus o escriba Ibrahim. E a família em tela achava-se em profundo desgaste moral e financeiro: saíra do Alto Egypto, de Tinis, às pressas, para habitar a zona do Baixo Egypto, a cidade de Meidum – malcheirosa, por sinal.
            Ora, isso denotava um cru sinal decadência. Mas, mesmo assim, iam à Pirâmide todos os domingos e, de uma religiosidade sem par, levavam muita fé no Boi Ápis, no Gato, na Cobra, no Íbis e outros santos menores que depois foram afastados, descartados do calendário... Quando adoravam o Sol, costumavam gargalhar: “Ra! Ra! Ra!”. Nascendo daí as palavras cruzadas.
            Meteamon e Ninfômana tinham dois filhos: um rapaz de nome Mentecapto Incestuoso e uma bela rapariga, Clitóris Vibrante, que se excitava à toa. Com eles, filhos amados e amantes, Met e Ninf cultivavam o mais acirrado choque de gerações, degenerações ou ainda exagerações. Jovens rebeldes que eram, botavam pras cabeceiras (do Nilo, talvez), pois cursavam a moderna Faculdade de Mênfis e usavam blusão de couro com desenho colorido do deus Hórus – o divino falcão real. Esses jovens estavam engajados num movimento contra a mumificação, vida além-túmulo, instituições funerárias, esfinges neuróticas, programas infantis, e, principalmente, contra uma nova classe social, poderosa e influente, que surgiu para garantir as guerras (adivinhem vocês, queridos leitões e leitoas). Sofriam também ligeira influência da ideia monoteísta de Tutankamon, um sujeito muito liberal, um agitado agitador.
            Bem, à medida que as contradições aumentavam, as rebeliões internas sucediam-se, enfraquecendo o regime, do que se aproveitaram tribos nômades asiáticas – os Hicsos, que se juntaram aos Aquilos – que invadiram o Egypto pelo Norte do Vale do Nilo e destruíram um grande número de túmulos e santuários. Ao que Mentecapto exclamou: “Hicsos, sim!”, sendo tachado (recebeu de fato uma tacha ou um tacho pela cara) de traidor da pátria, filho da pútrida, ideólogo exótico e demais amenidades óbvias ou obviedades amenas. O fracasso da derrota egípcia deveu-se unicamente à formação de seus soldados. Como pudemos observar pelas gravuras da época, vimos que o batalhão era todo fora de esquadro: marchavam os bélicos milicos de cabeça pra frente, olho pro lado, pernas pra frente, tórax e braços para o lado (posição esta pra eles; para nós a observação é inversa), devido à chamada lei da frontalidade que ninguém ousava descumprir. Isto é, uma estranha (im)postura, um desmunhecar geral.
            Já Clitóris era uma garota ultraprafrentex como todos viam e comentavam, à exceção dos cegos, naturalmente, que só comentavam o que não viam, a exemplo de muitos pelaí. Sempre dentro da moda, do último berro da moda, moderninha, biquíni de uma peça só, de bolinhas, esteirinha de palhinha, e lá ia ela gozar literalmente as delícias das margens do Nilo (na vazante, é claro), tomar banho de Ra, pois não era besta de mergulhar n’água, uma vez que não sentia a mínima inclinação para se transformar em repasto de crocodilos.
            Mas Clitóris tinha seus momentos de negra phossa, quando sua incompreensiva e reacionária mãezinha proibia-lhe de usar malaquita verde-malva macerada nas pálpebras – a maquiagem da onda, ou reprimia-lhe a leitura do romance “A Tentação de Carnac” ou “As Aventuras dos Três Patetas: Queops, Quefrem e Miquerinos”.
            Era considerada a tulipa negra da família.

                                                                                         RICARDO AUGUSTO DOS ANJOS (1980)

2 comentários:

  1. Não conhecia o texto, Ricardo.
    Gostei muito.
    Abraço
    Carrano

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  2. Ricardo, desconhecia esse texto e fui tomada de surpresa.Interessante mesmo. Diferente. Vc é múltiplo na escrita.
    Abs
    Belvedere

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