28 de junho de 2011

Noir...


 MANUY
Ricardo Augusto dos Anjos
Ao murmurar o nome dela perto da lanchonete da esquina movimentadíssima, lembrou que uma verdadeira cascata de luz brotara do sexo de Manuy na última noite, muito rápido seu olhar para dentro da segunda porta após o pequeno hall de entrada da pensão. Porta da direita ou da esquerda? Que importa a posição da porta ? Entreaberta a porta, entreaberta Manuy  cheia de luz que escorria até o corredor , depois de inundar a cama, o chão do quarto, leite derramado. Tinha acabado de amar -- uma figura talvez ainda estivesse escondida no lado oculto, no lado sombrio do quarto de Manuy. Alguém que se coleava de gozo quente, corpo tremendo. Sim, parecia isso mesmo. A pulsação que vinha de dentro do quarto, misturada à luminosidade derramada do sexo de Manuy, que se via no relance do passar ligeiro no corredor da pensão, no corredor da prisão, no corredor da morte, ao murmurar o nome dela perto da lanchonete da esquina movimentadíssima. Comendo hot-dog, sujando a barba no molho, no molho do hot-dog, no molho do sexo fluente de Manuy, quando da primeira vez ela o chamou de fúria alada, e que, gata morna, morena, queria morrer de amor. Esse ritmo ofegante fazia doer o membro, príapo ardente.

         Ah, Manuy. Toda largada, lassidão nos olhos, que são os olhos os denunciadores de toda intensidade do viver e do morrer e, principalmente, do morrer de amor. Porque Manuy parecia viver de morrer de amor. Amor que caía sobre ela como um raio em meio a uma daquelas pouco lembradas tempestades de verão numa infância remota, ou que se quer remota, invulnerável, sem muita dor. Como um raio mesmo caía o amor nas entrepernas de Manuy, no vale verde de Manuy, no desfiladeiro por onde adentravam potros fogosos e aves de rapina, rutilantes aves de rapina. Desfiladeiro por onde, ao crepúsculo vespertino, sempre corre, sempre escorre um nervoso rio de sêmens, formando cascatas de luz em sexo esplêndido. Ora, Manuy era a própria terra. Terno abraçar, entrelaçar de raízes de árvores, de verdes, de vermes. E o forte cheiro da natureza toda. E o sangue do cio dessa natureza atraindo os animais, os homens, e os deuses -- estes se limitando a olhar por entre nuvens, por entre as sombras da tarde-quase-noite segura nas pontas por anjos barrocos cobertos de suor. Manuy. Era justamente nessa hora que Manuy se esvaía em êxtases. E morria. Lânguida. E sonhava um denso sonho, com cortes cinematográficos:

         Portas se abrindo. Um indefinido onde, onde ninguém ali, além de um gato parado, pardo. Sorriso enorme, de piano. Janela alta, vista de fora. Rua deserta. Vento silencioso. Janela fechada. Fresta. E pela fresta um risco luminoso. O ar abafado. Velhas paredes. Um lago. Um pântano. Mãos se movimentando, lentas, surgindo da lama concêntrica. Mãos de maestro em câmara-lenta. Na memória, o grito de uma criança ao ser atropelada e morta. Não, não deve ter havido grito nenhum. Cabeça de boneca, esmigalhada. Sangue, pastoso. A rua já limpa. Alguns passos fortes, apressados, de fuga. Um beco. Num canto, lâmina brilha. Sol no punhal. Estrada molhada de chuva recente, curva, marcas de pneus. Campainha da porta. Olhos espantados, seios nus. Máquina de moer carne mói um dos seios caídos de uma cigana. Gargalhada de dor. Soldado nazista pega os seios de menina, enfia-lhe a baioneta e se contorce de tanto prazer. Relâmpago amarelece a cara podre de padre junto a uma imagem de cristo numa cruz de pedra que submerge no lago. Vultos em torno do lago. Rostos sem rostos, sem traços. Homem ajeita óculos e chuva pinga no vidro dos óculos. Vidraça. Baça. Braço tenta limpar a vidraça. Chove. Chove. Olho na vidraça. Ao longe, praia com muita chuva. Antes, a praia era toda sol e Manuy estava lá, desenhando na areia. Muito loura, muito ouro, olhos azuis. De maiô verde-amarelo. Cabeça no joelho, olhar baixo. Dedo escrevendo na areia. Traço divide letras e signos muito próprios, particulares. Boca move-se lentamente. Close: olho azul clarinho, claríssimo. No olho, a memória  de um adeus. De repente, chicote enrosca-se no pescoço. Cobra coral.

         Manuy, suando, acorda. Corda no pescoço, a forca, brincadeira neurótica e de mau gosto do último parceiro, banhado na transparência do suor de amor de Manuy. Dentes trincados antecipando a violência, a fúria da mordida na nuca, na ponta da orelha. A fúria da fera. O amor do machão. O crime se aproxima, o clímax. O gozo de quem mata e de quem morre escorre pelos desvãos do tempo marcado por um velho e pesado carrilhão. O quarto cheira a museu de cera. A alma atacada de Manuy é que se solta do algoz e corre por entre figuras maceradas, pedindo socorro, urgência, que seu corpo está prestes a morrer e não, não deveria ser agora. Mas ninguém escuta (ou escutam e se derretem os bonecos de cera) o lamentar de Manuy, da alma de um corpo que amava tanto, de um sexo bom como uma flor se abrindo em luz nas primaveras regidas pelos faunos, pelos  vorazes pássaros de Lesbos, sempre logo após a estação das chuvas. Sexo sempre molhado o de Manuy, agora assim, estrangulada assim por um lobo assim, uma fera de ciúme assim, que não compreendeu que o impulso do amor é doce instinto, é natural como o sangue na veia, é o despertar e o dormir de criança. E não, absolutamente não, esse apedrejar de Manuy com a primeira pedra, a segunda pedra, a terceira pedra dos que absolutamente não sabem o significado de fonte fértil que é, num dado momento, o abrir de pernas generoso em generoso cio. Como Manuy sempre fizera até então sempre intensa e imensamente iluminada. Bem ali, perto da lanchonete da esquina movimentadíssima. E mais perto ainda da Delegacia de Mulheres.   

3 comentários:

  1. Salve MANUY!
    Augusto Barros-RJ

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  2. Quando penso nos inúmeros textos eróticos que leio por aí, sem nenhum compromisso com a estética literária, vejo em Ricardo, inesperadamente, essa veia erótica trabalhada à exaustão. Poeta, rendo-me ao seu talento e queira os céus que um dia eu consiga escrever um texto denso e com um conteúdo tão avassalador.Haja coração!
    Parabéns. Parabéns.
    Belvedere

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  3. Ricardo, um texto erótico, com toda delicadeza de quem rege a palavra, como se uma sinfônica.

    Manuy é uma obra prima...saúdo teu verbo , substantivo e másculo.
    Abs, anamerij

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