27 de junho de 2011

Icaraí, 1961

Angústia de Verão




Ricardo Augusto dos Anjos

Fui ontem à praia. Parei na calçada, olhando a mim mesmo, eufórico, entre Wanda, Marly, Eduardo, Ludmila e outros. O sol dourava corpos e colocava em cada coisa a cor adequada. Lentamente, a paisagem ia se formando bem perto do mar, nem verde, nem azul. Dava maior atenção a Wanda, a quem amava e ainda hoje guardo na memória, um tanto triste e amargo.

Da praia até a rua onde Wanda morava, em tempos de verão, o caminho era claro e perfumado pela brisa leve que soprava do mar, carregada de iodo. Isso me alegrava e a ela também. Nossos sentimentos pareciam explodir e as palavras trocadas sonoras e irisadas de amor, de paixão. O diálogo sempre terno conduzia-nos a uma atmosfera de sonhos e impossibilidades. Grande a nossa atração – corpos banhados de sal recente, na livre comunhão com o mar.

 “Ricardo, procurei por todos os meios compreender-me primeiro, para fazer uma revelação menos chocante, a fim de evitar prantos. Chorei muito ontem, ao ver o voo lindo das gaivotas sobre o mar. Você estava com toda a razão acerca daquele sinal geométrico que você desenhou na areia e que eu apaguei logo com minhas mãos nervosas. Ludmila sabe de nossas angústias. Mais das minhas, talvez. De mim, posso dizer que sou triste-alegre ou alegre-tristonha. Uma boba que sou, é a verdade. Uma coisa: meus olhos nunca mentiram a você. Sei que você exigiu definição. Daí aquele despedir rápido, com muito medo do amor que surgia forte, prenúncio de algo que suspeitava estranho e que em absoluto não merecíamos. Agora, sinto o entardecer de tudo, inclusive de nós. Dormi profundamente e despertei num mundo diferente; sem mar, sem você.Escrevo, porque há séculos você espera uma satisfação de minha parte, tenho certeza. Confesso que escrevo com medo do mal que possa causar. Aproveito o momento, pois acho-me lúcida. Lúcida, mas com medo. As crianças estão impossíveis, aguardando o pai. O apartamento é razoável e você nunca deverá me visitar. Um abraço e tchau.  Wanda -- PS.: Disse estar lúcida. Puro engano. Meus olhos secaram, Ricardo, mas estão à espreita da primavera”.

Corri ao encontro de mim e bati nos ombros dele. Levava-lhe a carta. Pareceu não me notar.  “Sou eu, sou eu!” – disse-lhe repetidas vezes.

Olhares me consumiam na manhã tropical e surpreendi-me traindo a mim mesmo, ao outro que era eu. Wanda percebeu e ficou confusa, a ponto de se denunciar totalmente. Ela adivinhava, naquela hora, todo o futuro e reconhecera o papel que eu trazia, já meio amassado, numa das  mãos. Num gesto silencioso apontou-me Ludmila, que sorriu, cumprimentando-me. “A verdade, amigo, só muito depois”.

Não pude evitar o que estaria por vir. Ele insistia e era feliz. Olhei-os: no mar, deitados na balsa colorida, flutuantes e descontraídos, Wanda e o outro que era eu respiravam fundo, fixando o céu. Lembrei, então, das margens floridas de um caminho que idealizei para nós dois. Mas a realidade sempre me deu socos na boca do estômago. Aliás, o mal-estar era o mesmo que.

Ludmila já revelou o mistério. Nesse momento, regressei a mim na calçada da praia e notei os gritos trágicos que as gaivotas emitem antes do mergulho solitário.
                                                        Icaraí, 1961

4 comentários:

  1. Anônimo disse...
    Ricardo dos Anjos, um excelente autor! Literacia mais uma vez brindando seus leitores com o que existe de melhor.
    Belvedere
    26 de junho de 2011 07:55

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  2. Revista Literária disse...
    Uma crônica de pura encantaria.
    OBRIGADA POETA!
    anamerij
    26 de junho de 2011 08:50

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  3. Anônimo disse...
    DO MELHOR QUILATE.
    Maria Elvira Salles-BH
    26 de junho de 2011 15:04

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