16 de outubro de 2011

O mar entrou violento nos olhos do bichano.

O GATO


Não olharam para o gato com a grave responsabilidade que ele exigia. O mar entrou violento nos olhos do bichano. A partir desse momento todo cuidado era pouco numa contemplação menos avisada. A calma ociosa e chinesa do animal, aquela calma concentrada, aquela calma estirada sobre o tapete marrom talvez fosse prenúncio de revolta ou instinto ancestral ignorado. Pxiiirr... Seu pelo eriçava elétrico, o rabo em signos pedia leite e carne picadinha comprada no açougue da esquina. Carne para o gato da moça do 4º andar. “Um rei, um rei!” Lá pelas tantas do dia chegava a hora mais difícil para quem toma conta de gato na ausência da dona: a hora da carícia. Vejamos. Começar por onde? Hummm. O gato ronronava e rezingava nervoso. Necessitava rápido de uns dedos bastante ágeis, hábeis, para o cafuné habitual indispensável. “Porcaria de gato manhoso! Gato não é gente, mas quer mão coçando”. E o tempo corria. A decisão cada vez mais indecisa. Jogava-se a sorte do gato. Luta pela sobrevivência. O bicho então emitia forte som metálico. Ameaçador, arreganhava os dentes, felinos, ferinos. O dono das mãos e dos dedos achava ridículo fazer carinho num gato como aquele, luxento pra chuchu. Mas se não o fizesse, ah, ia ter que se ver com a moça quando ela chegasse. Talvez no mínimo um escândalo. Talvez ameaçasse atirar-se pela janela do apartamento, numa cena típica de ópera-bufa. Talvez, uma porção de talvez. Suava em conjecturas. Leve rajada de vento salvou-o e sugeriu algo. Já admitia a ideia da bronca, pois conhecia bem a dona. Porém não se curvava nunca e não faria ridículos carinhos em gato nenhum. Parou e pensou. Pensou mórbido. Matar e empalhar o gato. Vingança pela antipatia e soberba da proprietária.  Escândalo viria de um jeito ou de outro, dada a incúria com o bichano. Acuado, escolhera o crime. “Isso mesmo: empalhar o gato!” A essa altura os verdolhos dissimulados do félix causavam grande irritação. Mas resolveu poupá-los. Daria impressão ligeira de que o gato ainda estaria vivo. Não haveria escândalo, até a moça perceber tudo. Resolvido! “Vem cá, querido, queridinho da patricinha; vem cá, mongol do coração do papai aqui; vem cá... Pichanim! Pichanim!” Pronto! Zás-trás! Catapimba! Vitória. Abriu o gato de cima a baixo. Tomou cuidado com o sangue que jorrava. Usou a pia da cozinha. “Pois é, gato desgraçado, bem feito! Quem mandou ser luxento e a dona antipática?”
         Terminada a Operação Cat, o vingador tomou todas as providências possíveis para a dissimulação dos primeiros momentos que não deveriam ser percebidos pela moça ao chegar. Só quando estivesse bem longe e procurado pela polícia pelo abominável crime de trucidar e remendar um gato em propriedade particular. A SPA certamente patrocinaria a busca do estripador e pediria pena capital. Porém os defensores dos animais desconheciam a terrível tortura psicológica e humilhação a que se submete uma pessoa obrigada a afagar, fazer carinho num gato chato de uma dona chata. “Ah, se tivesse mais coragem, empalharia ela também”.
         A campainha gritou, metálica. O homem deu um pulo da cadeira e teve arrependimento milésimos de segundo. Respirou fundo e abriu a porta. Mal ela entrou, ele saiu correndo, espavorido, denunciando um péssimo e novato criminoso. Desajeitado. Deixando transparecer tudo e mais alguma coisa. Tanto que a mulher funcionou seu sexto sentido a todo vapor. Não foi preciso dizer nada. Percebeu, e ficou num canto aniquilada. Impotente para o escândalo.  Olhou em volta a pequena sala escura. O contorno silente da mobília, impassível ao acontecido. A janela apresentava as primeiras luzes da noite. Também indiferente. Do gato imóvel, empalhado, só o verde oriental dos olhos resistiam, mas sem o verde de antes. Sinistro, muito sinistro. Então, a moça do 4º andar, largada em lassidão na poltrona, congelou um suspiro.

Ricardo Augusto dos Anjos ( Niterói - 1960)

3 comentários:

  1. "...só o verde oriental do olhos reistiam..."
    Bom domingo!
    Carrano

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  2. Preciso aprender a digitar:
    "... só o verde oriental dos olhos resistiam..."

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  3. Amigo, para quando o seu livro, hein?
    Abraços
    Bel

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