18 de março de 2012

21 de dezembro de 2011

GUERRA / PAZ


        [Portinari]


homem  homem

         ama fonte

         sol

         trigo  vida

         vida

         almas salvas

         na crença

         ave

         sonora

         ave

         também crê

         no ar



         homem  homem

         uma ponte

         ferro

         aço

         fornalha chia

         prepara arma

         clarinada

         não descansa

         alarma província

         descamba soldado

         beijo nas cãs

         enfim a partida

         na hora-vácuo



         homem  homem

         lança luta

         quebra ponte

         seca ponte

         semente saudade

         solidão plantada

         soldado plantado

         opostos postos

         a postos nos postos

         apóstolos do medo

         claustro de olhos

         em que a lua

         logra turvo vão



         bala

         corpo

         morto

         vala



         homem  homem

         antes antes

         noite de paz

         morte do pai

         norte da pátria

         herói não volta

         horizonte  cais



         pausa



         tarde rubra

         tomba sobre tumba



       HIPOCAMPO



         Netuno presencia

         azul em verde campo



         longas as barbas do rei

         e pontas do tridente



                  hipo

                           hidro

                          

         veloz cavalinho

         do mar com rédea alga



         bolha verde azul

         líquido relincho



         Netuno ri à beça

         com dentes de cristal



         logo após submerge

         e o mar silencia



         exceto hipocampo

         galopante cavalinho



         lua linda aparece

         alvo geométrico



         seduz equóreo

         equestre upa! epa!



         num salto galopa

         para o seio da lua



                   hipo

                            hidro



         lá se vai cavalinho

         alegria de Netuno



         ancião de longas barbas

         e pontas do tridente



                   hipocampo



         (resta apenas

          no fundo do mar

                   ?

         sua forma

                   e ausência)

22 de outubro de 2011

Amplidão e início onde gaivotas matinais riscam...

Icaraí, sonho de Deus


Ricardo Augusto dos Anjos

Icaraí certamente nasceu de um sonho
de Deus, no Dia do Descanso.
Um sonho em que Ele descobriu as cores
e as colou no céu, no mar e na praia,
iluminando-as com o Sol
para que todos sentissem a maravilha.
E por ser sonho, permanece
-- essência do divino que há em nós
e nos atrai, inconscientes
                      --  dourado perfume em pleno azul.

Icaraí,
                  ação e memória do que se ama
                      em corpo e água, num mergulho
                  que limpa, que redime as angústias
                  do vivido e espraia sorrisos na areia.
 
Olhar a paisagem em torno
e surpreender-se outro: marujo
na aventura do Distante,
com o peito tatuado de adeuses
e o sal na boca
                        a lembrar o peixe e sua hora.

Icaraí,
                    amplidão e início
onde gaivotas matinais riscam,
                                                            na mágica do vôo,
o destino desta angra verdeazul
que não se esgotará nunca
ao consumo dos banhistas
por mais insaciáveis que sejam de infinito.
         
        (Este poema obteve o 1º lugar no concurso  literário da Semana de Icaraí-72 em Niterói)
                                         

16 de outubro de 2011

O mar entrou violento nos olhos do bichano.

O GATO


Não olharam para o gato com a grave responsabilidade que ele exigia. O mar entrou violento nos olhos do bichano. A partir desse momento todo cuidado era pouco numa contemplação menos avisada. A calma ociosa e chinesa do animal, aquela calma concentrada, aquela calma estirada sobre o tapete marrom talvez fosse prenúncio de revolta ou instinto ancestral ignorado. Pxiiirr... Seu pelo eriçava elétrico, o rabo em signos pedia leite e carne picadinha comprada no açougue da esquina. Carne para o gato da moça do 4º andar. “Um rei, um rei!” Lá pelas tantas do dia chegava a hora mais difícil para quem toma conta de gato na ausência da dona: a hora da carícia. Vejamos. Começar por onde? Hummm. O gato ronronava e rezingava nervoso. Necessitava rápido de uns dedos bastante ágeis, hábeis, para o cafuné habitual indispensável. “Porcaria de gato manhoso! Gato não é gente, mas quer mão coçando”. E o tempo corria. A decisão cada vez mais indecisa. Jogava-se a sorte do gato. Luta pela sobrevivência. O bicho então emitia forte som metálico. Ameaçador, arreganhava os dentes, felinos, ferinos. O dono das mãos e dos dedos achava ridículo fazer carinho num gato como aquele, luxento pra chuchu. Mas se não o fizesse, ah, ia ter que se ver com a moça quando ela chegasse. Talvez no mínimo um escândalo. Talvez ameaçasse atirar-se pela janela do apartamento, numa cena típica de ópera-bufa. Talvez, uma porção de talvez. Suava em conjecturas. Leve rajada de vento salvou-o e sugeriu algo. Já admitia a ideia da bronca, pois conhecia bem a dona. Porém não se curvava nunca e não faria ridículos carinhos em gato nenhum. Parou e pensou. Pensou mórbido. Matar e empalhar o gato. Vingança pela antipatia e soberba da proprietária.  Escândalo viria de um jeito ou de outro, dada a incúria com o bichano. Acuado, escolhera o crime. “Isso mesmo: empalhar o gato!” A essa altura os verdolhos dissimulados do félix causavam grande irritação. Mas resolveu poupá-los. Daria impressão ligeira de que o gato ainda estaria vivo. Não haveria escândalo, até a moça perceber tudo. Resolvido! “Vem cá, querido, queridinho da patricinha; vem cá, mongol do coração do papai aqui; vem cá... Pichanim! Pichanim!” Pronto! Zás-trás! Catapimba! Vitória. Abriu o gato de cima a baixo. Tomou cuidado com o sangue que jorrava. Usou a pia da cozinha. “Pois é, gato desgraçado, bem feito! Quem mandou ser luxento e a dona antipática?”
         Terminada a Operação Cat, o vingador tomou todas as providências possíveis para a dissimulação dos primeiros momentos que não deveriam ser percebidos pela moça ao chegar. Só quando estivesse bem longe e procurado pela polícia pelo abominável crime de trucidar e remendar um gato em propriedade particular. A SPA certamente patrocinaria a busca do estripador e pediria pena capital. Porém os defensores dos animais desconheciam a terrível tortura psicológica e humilhação a que se submete uma pessoa obrigada a afagar, fazer carinho num gato chato de uma dona chata. “Ah, se tivesse mais coragem, empalharia ela também”.
         A campainha gritou, metálica. O homem deu um pulo da cadeira e teve arrependimento milésimos de segundo. Respirou fundo e abriu a porta. Mal ela entrou, ele saiu correndo, espavorido, denunciando um péssimo e novato criminoso. Desajeitado. Deixando transparecer tudo e mais alguma coisa. Tanto que a mulher funcionou seu sexto sentido a todo vapor. Não foi preciso dizer nada. Percebeu, e ficou num canto aniquilada. Impotente para o escândalo.  Olhou em volta a pequena sala escura. O contorno silente da mobília, impassível ao acontecido. A janela apresentava as primeiras luzes da noite. Também indiferente. Do gato imóvel, empalhado, só o verde oriental dos olhos resistiam, mas sem o verde de antes. Sinistro, muito sinistro. Então, a moça do 4º andar, largada em lassidão na poltrona, congelou um suspiro.

Ricardo Augusto dos Anjos ( Niterói - 1960)

1 de outubro de 2011

Antiguidade & Humor


ESTÓRIAS DO TIO HERÓDOTO


 “O Egypto é a Dívida do Nilo”


          
            Meteamon III e sua esposa Ninfômana XVIII quedaram-se na mansuetude de sua opulenta mastaba. Ele lia com interesse fora do comum, à luz de imensa claraboia, a “Roseta Press” com as últimas notícias inscritas em hieróglifos sobre a crescente luta de classes (nobres contra faraós e a agonia da mão-de-obra escrava, fora os pesados impostos impostos ao povo), enquanto ela ligava seu mecanismo de sonhos (ainda não havia televisão) para assistir a mais um capítulo de “A Serpente do Nilo atraca outra Vez”. E a ampulheta marcava 17.789 grãos. Era noite.
            Época de crises que abalavam e embalavam o Império Faraônico, um tanto cônico, ou melhor, como sói acontecer nessas ocasiões, os faraós é que abalavam o Império. “Uns esbanjadores hedonistas” – lascava na pedra ou no papírus o escriba Ibrahim. E a família em tela achava-se em profundo desgaste moral e financeiro: saíra do Alto Egypto, de Tinis, às pressas, para habitar a zona do Baixo Egypto, a cidade de Meidum – malcheirosa, por sinal.
            Ora, isso denotava um cru sinal decadência. Mas, mesmo assim, iam à Pirâmide todos os domingos e, de uma religiosidade sem par, levavam muita fé no Boi Ápis, no Gato, na Cobra, no Íbis e outros santos menores que depois foram afastados, descartados do calendário... Quando adoravam o Sol, costumavam gargalhar: “Ra! Ra! Ra!”. Nascendo daí as palavras cruzadas.
            Meteamon e Ninfômana tinham dois filhos: um rapaz de nome Mentecapto Incestuoso e uma bela rapariga, Clitóris Vibrante, que se excitava à toa. Com eles, filhos amados e amantes, Met e Ninf cultivavam o mais acirrado choque de gerações, degenerações ou ainda exagerações. Jovens rebeldes que eram, botavam pras cabeceiras (do Nilo, talvez), pois cursavam a moderna Faculdade de Mênfis e usavam blusão de couro com desenho colorido do deus Hórus – o divino falcão real. Esses jovens estavam engajados num movimento contra a mumificação, vida além-túmulo, instituições funerárias, esfinges neuróticas, programas infantis, e, principalmente, contra uma nova classe social, poderosa e influente, que surgiu para garantir as guerras (adivinhem vocês, queridos leitões e leitoas). Sofriam também ligeira influência da ideia monoteísta de Tutankamon, um sujeito muito liberal, um agitado agitador.
            Bem, à medida que as contradições aumentavam, as rebeliões internas sucediam-se, enfraquecendo o regime, do que se aproveitaram tribos nômades asiáticas – os Hicsos, que se juntaram aos Aquilos – que invadiram o Egypto pelo Norte do Vale do Nilo e destruíram um grande número de túmulos e santuários. Ao que Mentecapto exclamou: “Hicsos, sim!”, sendo tachado (recebeu de fato uma tacha ou um tacho pela cara) de traidor da pátria, filho da pútrida, ideólogo exótico e demais amenidades óbvias ou obviedades amenas. O fracasso da derrota egípcia deveu-se unicamente à formação de seus soldados. Como pudemos observar pelas gravuras da época, vimos que o batalhão era todo fora de esquadro: marchavam os bélicos milicos de cabeça pra frente, olho pro lado, pernas pra frente, tórax e braços para o lado (posição esta pra eles; para nós a observação é inversa), devido à chamada lei da frontalidade que ninguém ousava descumprir. Isto é, uma estranha (im)postura, um desmunhecar geral.
            Já Clitóris era uma garota ultraprafrentex como todos viam e comentavam, à exceção dos cegos, naturalmente, que só comentavam o que não viam, a exemplo de muitos pelaí. Sempre dentro da moda, do último berro da moda, moderninha, biquíni de uma peça só, de bolinhas, esteirinha de palhinha, e lá ia ela gozar literalmente as delícias das margens do Nilo (na vazante, é claro), tomar banho de Ra, pois não era besta de mergulhar n’água, uma vez que não sentia a mínima inclinação para se transformar em repasto de crocodilos.
            Mas Clitóris tinha seus momentos de negra phossa, quando sua incompreensiva e reacionária mãezinha proibia-lhe de usar malaquita verde-malva macerada nas pálpebras – a maquiagem da onda, ou reprimia-lhe a leitura do romance “A Tentação de Carnac” ou “As Aventuras dos Três Patetas: Queops, Quefrem e Miquerinos”.
            Era considerada a tulipa negra da família.

                                                                                         RICARDO AUGUSTO DOS ANJOS (1980)

28 de agosto de 2011

(Saber) envelhecer é uma arte ... da qual não sou capaz



         Terra do Sal



Ricardo Augusto dos Anjos

         I

         O esqueleto do barco
         arco morto na Lagoa
         é sinal íntimo
         que decifro ao tempo
         em que árvore e vento
         curvam-se ao sal.
         II

         Mar fora da barra
         estronda em Cabo Frio.

         O vento enche a praia
         e os rostos de salitre.
         O iodo açula o sexo
         -- incontrolável biltre --
         que detecta em seu radar
         o corpo mais sutil.
         Mar fora da barra
         envolve tudo num grito.
         De amor.



         III




         Cabo Frio, ouro, ouro
         avança para o mar -- cristal equóreo
         onde o mistério atrai os homens
         que extraem do sal da vida o pão- de- cada- dia.
         (A esperança brota do horizonte na aurora.)

         O progresso mina duros corpos de suor
         -- mapa de amor -- com vestígios de fundas raízes.
         Meus olhos te contemplam, Cabo Frio telúrico;
         sob um sol marca de fogo
                                      o teu destino:
                                               de sal e sol
                                                        ávida vida!



Breve canção de promessa
após aquele encontro numa
tarde excelente de sábado

         Eu vou. Um dia, eu vou.
         Até a sua casa. Olhar tanto pra você.
         E me deitar. Descansar na sua rede.
         Me enredar no seu corpo. Escrever na parede
         os versos do nosso amor. Com o sangue do meu peito
         que sua unha arranhar. E matar a sede braba.
         E matar a sede braba que um sente pelo outro.

Isso aí

         (Saber) envelhecer é uma arte
         da qual não sou capaz.
         Envileço.


        
         Anna



                    [a Bertha Klüppel]

         Da flor nasceu o fruto
         em terras de Israel.
         É Anna de Bertha só.
         É Anna de Bertha só
         que se exilou porque quis
         reciclar a sua alma.
         É Anna de Bertha só
         que já acena às origens
         num êxodo às avessas.
         É Anna de Bertha só
         que a gente ama por ser
         Anna de Bertha só.

14 de agosto de 2011

Ou era o vento que o impelira ao bojo do silêncio?


CHEGOU


Chegou tarde à casa de campo e, após tomar uma ducha fria no chuveiro da piscina, respirou fundo de alívio. Olhou para o céu estrelado entre nuvens claras e azuladas pela luz do luar. Sorriu um sorriso de inocência. Inocência que absolutamente não cabia naquele momento, principalmente depois do que acontecera no escritório. Enxugou-se, então, e atirou para longe a toalha. Nu, sentiu-se melhor que nunca. Esticou-se na espreguiçadeira. Abstraiu-se. E navegou. Vagou mil anos improficuamente pelas monotonias siderais, onde não há nem haveria dor. A morte, sim, teria essa sensação de neutra vacuidade na hora da passagem, do largar o corpo pra lá ou pra cá e sustentar a alma com leveza. Era, na certa, o silêncio quase absoluto daquele meio de mato onde se encontrava que o conduzia ao vento, ao nada. Ou era o vento que o impelira ao bojo do silêncio? Era mais provável que fosse a brisa, a leve brisa de fim de verão a responsável por esse estado que supôs, ou forjou inconsciente, de encantamento. Justo depois que a tarde trouxe a lua, como na canção do Alf, do alfa e do ômega, do amor que surgiu, se insurgiu e morreu no mar por não resistir, não insistir. E por ser pretérito, foi preterido no protetorado do tempo. Do tempo que perdeu para chegar. E virou lamento de um desejo inquieto. “Ah, se a juventude que essa brisa canta, ficasse aqui comigo mais um pouco, eu poderia esquecer a dor de ser tão só pra ser um sonho. Daí, então, quem sabe alguém chegasse buscando um sonho em forma de desejo... Felicidade então pra nós seria... E depois que a tarde nos trouxesse a lua, se o amor chegasse, eu não resistiria e a madrugada acalentaria a nossa paz. Fica, ó brisa, fica, pois, talvez, quem sabe o inesperado faça uma surpresa e traga alguém que queira te escutar e junto a mim queira ficar...”

         Pronto, acabou-se a paz, ou melhor, findou-se a boa paz. E instalou-se a má paz (como no caso do bom e mau colesterol). Instalou-se a fossa dos anos 60, do pós-amor. E também a euforia dos anos 50 dourados, douradíssimos, pós-guerra. Da lágrima hoje interditada pela tecnologia de ponta. Do desejo hoje interditado pela bacteriologia da aids. Mas lembrou-se de Woodstock e atravessou a ponte. E seus olhos brilharam raios de ódio por não ter pulado no estribo do bonde da história quando este passou bem na sua frente, estridente. Por isso, tem até agora um grilo de não saber dançar para abraçar a dama, sentir ardor de corpos unidos e ritmados, prelibados. Por isso tem até agora outro grilo de não saber dirigir. Automóvel, claro, que todo mundo sabe ou deveria saber.

(Que estranho ser era ele, inserido em que contexto? “Você, francamente, não existe!” – ouvia da parceira que o depreciava sempre quando entravam em clinche no ringue conjugal.)

Ricardo Augusto dos Anjos
Itaipu Niterói 2003

6 de agosto de 2011

A POESIA DE RICARDO AUGUSTO DOS ANJOS


Da minha lírica

[ óleo sobre tela de Andrew Atroshenko]
         1.
         Sem avisos você surgiu
         para eu logo morrer nos seus olhos
         como gaivotas exaustas no litoral de pedras azuis
         azuis onde zune o vento que me desperta
         do refúgio de mim, onde é impossivelmente
         cruel mentir.

         Na impaciência de reduzir distâncias
         não tenho mais o olhar fixo nos abismos
         -- rompi o granito e os musgos que teciam
         veias para um sangue gelado e invisível.

         Falar de você é falar da minha procura oceânica
         de um corpo predisposto a primaveras e tépidas auroras.
        
         Seu mistério é inerente à sua condição
         e à minha esperança nesse início de enigma
         de estima sem estigma.

         A sondagem está à beira do seu corpo
         com palavras que explodem silenciosas como lírios
         aguardando o pulsar de um íntimo jardim.

             2.
         Semear sob um sol doméstico
         a exatidão de sermos
         entre duras memórias.

         Entre duras memórias
         despejar nos copos
         e dos copos aos corpos
         uma chuva de palavras.

         Uma chuva de palavras
         que cristalizam nossas ânsias
         de terraplanar caminhos de chegança
         sempre pela manhã.

         Sempre pela manhã
         deixar-me triturar
         pelo teu sorriso de piano
         solto ao vento da madrugada
         que derrama gestos de água.

         Com gestos de água
         estender as mãos
         (aflitos traços de gaivotas
         no papel da transparência)
         e dourar de suave amor
         o próprio rosto humano
         do amor.

             3.
         Se me retraio
         é para indagar se teu sorriso largo
         traz esfinges entre dentes
         ou guilhotina nos lábios.

            4.
         Sem avisos você surgiu
         para eu logo pousar nos seus olhos
         como gaivotas exaustas no litoral de pedras azuis
         azuis onde zune o vento que me desperta
         do refúgio de mim, onde é impossivelmente
         cruel mentir.

         Na impaciência de reduzir distâncias
         não tenho mais o olhar fixo nos abismos
         -- rompi o granito e os musgos que teciam
         veias para um sangue gelado e invisível.

         Falar de você é falar da minha procura oceânica
         de um corpo predisposto a primaveras e tépidas auroras.
        
         Seu mistério é inerente à sua condição
         e à minha esperança nesse início de enigma
         de estima
         sem estigma.

         A sondagem está à beira do seu corpo
         com palavras que explodem silenciosas como lírios
         aguardando o pulsar de um íntimo jardim.

             5.
         Você
         já nasceu pronta
         -- para as festas e comemorações solenes,
         para o charme discreto da burguesia,
         para as cintilações do dia e da noite.

         Você
         nem feia nem bonita
         -- simplesmente maravilhosa,
         adjetivável:
         light, carismática, enigmática,
         elegante de sustentável leveza,
         socialmente correta.

         Seus olhos?
         -- agressivamente doces,
         expressando um sutilíssimo
         brilho de molhado que seduz e excede
         qualquer entendimento e recato.

         Seus lábios?
         -- frutos pró-libido,
         mordíveis, apaixonáveis, saborosos, 
         arquetipicamente pecaminosos.
        
         Irresistível, você.